“Não acredito em homossexualidade ou heterossexualidade. Acho que o que chamamos de civilização, e todos os seus condicionamentos culturais e sociais, nos encaminharam para essa camisa-de-força que é a definição de um papel sexual. Durante muito tempo senti que minha sensibilidade
era feminina, mas nunca senti vontade de vestir roupa de mulher. Sempre
fui um bissexual atípico, tenho horror a bicha gritando em barzinho de
gays. Meus amigos são mulheres ou heterossexuais. Entremeei as relações
com homens e mulheres. Mas as histórias com homens foram muito
complicadas.
Sou PhD em desilusão amorosa. O homossexual masculino é muito galinha, muito sedutor. Fui muito honesto nas relações, não sei jogar. Odeio quando o amor se transforma em violência, competição, morbidez. Eu sou muito jeca
afetivamente. Nunca fui uma pessoa promíscua. Aos 46 anos, estou
cansado. Quando os amigos falam do amor e das frustrações, eu me sinto
tão distante…Acho que Deus, o grande amor, é a procura do conforto original, o útero materno, a tentativa de voltar para essa situação.
Tive várias namoradas,
poderia ter dois filhos, que foram abortados de comum acordo. Tive três
namoradas sérias. A Cacaia, Maria Clara Jorge, foi a mais séria, durou
três anos e com ela eu teria um filho que, agora, deveria ter uns 25
anos. Foi uma época de muita cocaína, durante um carnaval no Rio.
Ficamos trancados no apartamento, cheirando pó loucamente. Ela ficou
grávida. Aí pensamos que a criança nasceria deformada, nasceria um
monstro. Antes dela, tive uma namorada arquiteta, a Pifa, Helena – qual o sobrenome mesmo? – que virou adepta do guru Rajneesh. A Maria Luisa Bender foi outro grande amor, que conheci na Companhia das Letras.
Gostaria muito de ter tido filhos.
Aí penso o que faria se os tivesse. Eu, doente, com Aids, e meus filhos
lá com as mães – como ia ser isso na cabeça deles? Recentemente fui ao
Rio e vi a Cacaia, com quem poderia ter tido um de meus filhos. Ela
agora tem uma filhinha, Emília, com cinco anos. Ela me apresentou para a
filha e disse: “Vem ver o amigo da mamãe que está com Aids”. É o mundo de hoje.
Desde a primeira vez que
ouvi falar em Aids, quando vi na televisão o anúncio da morte do
costureiro Markito, em 1983, percebi que tinha a ver comigo. Na época, a
Aids dava exclusivamente em homossexuais e era conhecida como câncer
gay. Era ainda uma novidade muito grande. No meu arquivo de memórias, as
lembranças da Aids são muito boas. O cantor e compositor Cazuza, tão digno até morrer. O dramaturgo Vicente Pereira, que trabalhou até morrer. O ator Carlos Augusto Strazzer, que tomou Daime
(chá alucinógeno tomado pelos adeptos da seita religiosa Saanto Daime)
até morrer. Tantos outros que encararam com dignidade a doença.
Meu caso mais sério foi um rapaz de São Paulo. Como é uma pessoa conhecida, não posso dizer o nome dele. Era um bailarino, um ator fantástico. Morou na Suécia, nos Estados Unidos. Eram poucas as informações
sobre o uso da camisinha. Ficamos juntos alguns anos. Logo depois de
nossa história ele teve uma toxoplasmose. Morreu em 1989. E eu fiquei
soropositivo, embora a doença tenha se desencadeado só no final de 1994.
A partir da morte dele, não me descuidei mais.
Queria fazer o teste de HIV, mas morria de medo. Se fosse positivo,
tinha medo de morrer logo – sou fácil de sugestionar: estes dias, só de
ler nos jornais, estava com os sintomas do Ebola. Ao saber do resultado
positivo, enlouqueci, queria me jogar pela janela. Meus amigos ficaram muito assustados e me levaram para o hospital Emílio Ribas, em São Paulo.
Com o resultado, fiquei com uma sensação de alívio. Nunca tive vergonha ou neguei. Esta doença é a minha cara. Tem tudo a ver, eu sempre fui tão contemporâneo,
sempre estive à frente de tanta coisa. Não podia mesmo morrer de outro
jeito. Cosmicamente está certo. Em nenhum momento fiquei me culpando ou
perguntando a Deus ‘Por que comigo, ó Senhor? Que desgraça!’.”
A Aids é a minha cara: Anos Rebeldes (Depoimento a Fátima Torri - Revista Marie Clarie - Set 1995)
Caio F. Abreu
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